Quando pensamos em nossas mães e avós, não é difícil que a imagem de mãos rápidas costurando, remendando ou bordando algo, invada nossas mentes. O som do pedal velho e desgastado, o chiar da máquina, os tilintares do fiar, permanecem intensamente vivos em nossas memórias, que se tornam tão quentes e reconfortantes quanto o perfume do café coado em uma manhã de domingo.
A costura é um deleite antigo, um hobby, um trabalho, exemplo de disciplina e rigidez, é ordem em meio ao caos de tecidos e linhas; porém no miolo de toda essa frigidez, há o amor, o cuidado em costurar delicadamente cada bainha, em observar aquele buraquinho na agulha pensando “ela vai amar esse vestido” ou bordar um quadro com dedicação voraz, afinal, seu amado merece o melhor presente de aniversário de todos.
No conto “Flores de Inverno”, a escritora Natália Marques desenvolve a partir do bordado a relação entre mãe e filha, reconstrói suas esperanças e os laços com o pai, o marido, que está longe, na guerra; afinal, não havia muitas formas de uma mulher lutar na guerra senão tendo fé de que venceria os inimigos, que teria paz novamente e seus filhos e esposo nos braços do lar, protegidos sob uma manta quentinha.
No domingo (16), Marques realizou uma apresentação interativa no SESI, contando a história do conto lançado em 2022 na Festa Literária Internacional de Paraty. Ao longo da narrativa a autora bordou uma manta como a protagonista do livro.
“Flores de Inverno é todo narrado do ponto de vista da filha dessa família, que era uma criança nos tempos da 1ª Guerra e já adulta durante a 2ª Guerra. O bordado é o que une essa família, direta ou indiretamente, pois ele está ligado ao sentimento de amor e esperança que permanece na casa mesmo em meio ao caos dos conflitos. Então, a personagem conta o conto enquanto borda e, para interação do público, pensei no bordado para que eles também se sentissem dentro da narrativa, viajassem para a história junto com a personagem”, explicou a própria autora.

Para Natália o amor materno é um sentimento que permeia todas as suas obras, e quando viajamos para o universo de uma família, nos deslumbramos com as diferentes formas de amar que existem e trabalham juntas para estar sempre emendando, remendando, criando, descosturando e embelezando essa união, normalmente promovida pela matriarca, aquela que comanda a agulha; é nela que nos apoiamos e nos inspiramos. Hoje, em um mundo voltado para a tecnologia e a frenesi dos dias, até mesmo na frieza deles, é difícil sequer imaginar que alguém possa passar horas em frente a uma manta bordando com amor sem receber nada por isso – por vezes nem um “obrigada”.
Essa pauta é antiga, em 1995 fomos apresentados ao filme “Colcha de Retalhos”, dirigido por Jocelyn Moorhouse, onde nossos corações são tomados por uma trama profunda sobre a construção da feminilidade, do autoconhecimento (ou melhor, do se reconhecer) na vida adulta, sobre a complexidade das relações e da existência, que é uma arte em todos os sentidos. É naqueles retalhos simples, espalhafatosos, sonhadores ou sem graças, e na agilidade em que as senhoras cometem erros e acertos ao remendarem os diferentes tecidos, de origens diversas, mas que renascem em uma tessitura única, que conhecemos suas histórias particulares e entendemos um pouco mais do nosso lugar na Terra: não há um. Ele está sempre mudando, nós o seguimos, nós montamos nossa trajetória e podemos sempre desfazer e costurar novamente, desde que tenhamos a mente e o coração em boas atitudes.

A vida é longa… ou curta, a verdade é que não importa muito o tempo que temos, mas sim o que fazemos dele, como nossa cabeça funciona enquanto estamos aqui e como reagimos a natureza do existir. Se soubermos dançar conforme a música, se compreendermos que podemos superar os desafios, que podemos começar de novo, então sobrevivemos… Mais do que somente respirar, nós vivemos.
Flores de Inverno retrata a superação de uma família mergulhada em uma desordem, uma tragédia mundial, utilizando o bordado, uma arte antiga que nos remete àquelas que parem, criam, saram, erguem e ensinam o nosso ser; para além de um passatempo ou profissão, o artesanato se torna algo inerente à elas, porque executa na arte o mesmo papel que elas executam em seu cotidiano, sendo o alicerce de todos esses laços e fitas.